No último domingo, o site do Diário publicou uma entrevista com o empresário Nelson Campelo, sobre a visita de um grupo de empresários da área da tecnologia à cidade de Santa Maria com o objetivo de conhecer nosso cenário e, talvez, fazer investimentos nas nossas startups inovadoras.
Para uma cidade que é famosa por exportar cérebros e que há anos sonha em criar um polo tecnológico, essa é uma grande notícia. Estamos chamando a atenção de empresários de fora. Quem sabe, daqui a poucos anos, começaremos a receber investimentos privados externos no setor de tecnologia?
Entretanto, a vinda de recursos privados e de grandes empresários não é suficiente para a criação de um verdadeiro polo de impacto nacional.
Foto: Gabriel Haesbaert (Diário - Arquivo 09/02/17)
Tecnoparque, no Distrito Industrial, é um dos centros que reúne startups em Santa Maria
MITO DA INICIATIVA PRIVADA COMO ÚNICA INOVADORA
Quem costuma acompanhar a evolução da opinião pública no Brasil já deve ter percebido que há um enorme predomínio da ideia de que, se queremos que algo dê certo, é preciso deixa-lo nas mãos da iniciativa privada. Em outras palavras: tudo que o Estado toca deixa de evoluir. Um dos grandes exemplos que os liberais mais radicais citam é justamente o caso da tecnologia. Na visão deles, se temos hoje celulares supermodernos conectados à internet móvel e ultrarrápida, isso se deve exclusivamente à eficiência do setor privado. A tecnologia digital seria um símbolo do domínio do privado sobre o estatal em matéria de inovação.
Acontece que isso é uma enorme lorota. Um mito que persiste. E quem comprova isso é a história recente.
No ótimo livro Os inovadores, o escritor norte-americano Walter Isaacson (mesmo autor da biografia autorizada de Steve Jobs) faz um estudo historiográfico profundo das maiores inovações tecnológicas da era digital. O livro, lançado em 2014, conta detalhadamente em mais de 500 páginas como surgiram o computador, as redes, a internet, entre outras tecnologias fundamentais da atualidade. Um ponto do livro que me chamou a atenção foi o fortíssimo papel do Estado no desenvolvimento dessas inovações.
Como exemplo, cito os dois primeiros computadores digitais da história, que surgiram respectivamente por meio de projetos da Marinha e do Exército dos Estados Unidos. As duas instituições públicas não entraram apenas com a verba: elas mobilizaram pessoas, como militares e professores, definiram objetivos e metas, articularam recursos e espaços físicos, assumiram riscos em investimentos incertos.
Nas décadas seguintes, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA) dos EUA criou diversos grupos de trabalho que foram responsáveis pelo surgimento de grandes inovações, como as redes de computadores, a interface visual e interativa no computador, o GPS e a própria internet.
E não foi só nos EUA. Uma outra instituição pública, a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN), foi a grande responsável pelo desenvolvimento de tantas outras tecnologias digitais, como a tela sensível ao toque (touchscreen), o trackball (base tecnológica do mouse) e, a invenção mais importante deles, a World Wide Web (ou simplesmente "web"), que é esse sistema de páginas com hiperlinks que funciona dentro da internet e que permitiu o surgimento dos sites, como o Google, a Wikipédia e o Facebook.
Então, da próxima vez que algum ultraliberal disser que o iPhone só deveria ser usado por liberais, lembre-o que quase tudo que está por trás desse aparelho foi criado pela iniciativa do Estado. Logicamente, a iniciativa privada foi fundamental para a conversão dessas tecnologias em um produto compacto, prático e vendável. No fim, o resumo da ópera é esse: a tecnologia digital e inovadora, que rende centenas de bilhões de dólares aos países desenvolvidos, foi resultado de um esforço conjunto entre Estado e mercado, com a imprescindível participação de ambos.
BRASIL E A INOVAÇÃO
É claro que aqui no Brasil há um problema extra a ser considerado: nosso Estado não é dos mais eficientes. Logo, deveríamos deixar toda a indústria da tecnologia na mão dos empresários, certo? Mais uma vez, isso é um mito. Mesmo que tenhamos um sistema público tão ineficiente, ainda assim o Estado é a origem das maiores inovações tecnológicas brasileiras.
Posso citar alguns ótimos exemplos históricos de participação do Estado no desenvolvimento tecnológico nacional: se somos líderes mundiais na tecnologia da prospecção de petróleo em águas profundas, isso só foi graças ao fomento do Estado com pesquisa e inovação na Petrobrás. Se lideramos diversos setores produtivos dentro da agricultura internacional, muito se deve às patentes geradas dentro da Embrapa. Se o Brasil faz parte do seletíssimo grupo de produtores mundiais de aviões comerciais, foi devido à participação do Estado na Embraer e, também, à iniciativa estatal em se criar o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e o Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA) em São José dos Campos (SP). Sem esses centros estatais de pesquisa, não teríamos engenheiros, nem Embraer, nem tecnologia aeroespacial, nem aviões e nem os bilhões de reais gerados nas exportações.
Que fique bem claro: de maneira alguma estou querendo incentivar a prática do patrimonialismo, tão comum na infeliz tradição brasileira da promiscuidade entre o Estado e a elite econômica. O papel do Estado, aqui, não deveria ser a de fornecer subsídios para grandes empresários. Além de ser uma das grandes responsáveis pela desigualdade do país, essa prática cria distorções no equilíbrio do mercado e ilusões de desenvolvimento sustentável. Tanto que a própria Organização Mundial do Comércio (OMC) possui dispositivos para controlar esse tipo de auxílio estatal.
Onde o Estado deve entrar na inovação tecnológica?
Se o papel do Estado não é o de fornecer verbas ou de cortar impostos de grandes empresários, então do que estamos falando?
Estamos falando do papel do Estado no investimento em estruturas que fomente a pesquisa e o desenvolvimento. De ações que impulsionem a articulação entre as empresas inovadoras da região. Do financiamento de projetos inovadores (e de grande risco) desenvolvidos por pequenos e médios empreendedores. Estamos falando do papel do Estado no estudo, no projeto e na execução de ações inteligentes que criem redes locais de comunicação, inovação e produção tecnológica.
Os empresários podem até vir para nossa cidade e investir em nossas startups, mas infelizmente eles não conseguirão fazer milagres. Inovação tecnológica é uma aposta que envolve muitos recursos e gera resultados nem sempre satisfatórios. A iniciativa privada é rápida e eficiente, mas devido à sua natureza capitalista, ela também é superprotetora de si mesma e não tem a predisposição de arriscar tantos recursos em apostas tão incertas. Outro problema em deixar tudo à cargo da iniciativa privada é que sua busca obstinada pelo lucro pode ofuscar a sua visão sobre possíveis inovações mais abrangentes, que não geram lucros de imediato, mas que abrem portas para inovações derivadas (como foi nos casos da internet e da web).
Se Santa Maria ainda não conseguiu deslanchar seu polo tecnológico de porte nacional, eu me pergunto: onde está faltando a inteligência e o investimento estatal?
Onde se encaixam as responsabilidades da União, do Governo do Estado e da Prefeitura na concretização desse polo?
Qual será o político da região que irá articular essa movimentação política tão necessária para a cidade?
Santa Maria precisa urgentemente de um novo sr. Mariano da Rocha, mas que, no lugar da educação superior, fosse focado no nosso tão sonhado polo tecnológico.